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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O TURISMO TEM PÉS DE BARRO – por Carlos de Matos Gomes


Passando e não passeando por Lisboa, pelo Porto e pelo Algarve, lendo ou ouvindo as notícias, é grande a satisfação nesta Páscoa por estarem as cidades e as serras, as terras e as praias apinhadas de multidões de turistas nacionais e estrangeiros, que preenchem a capacidade hoteleira, como dizem os entrevistados, a 100%, ou mais.
Para estes a mais estão a ser construídos de raiz, ou adaptados a partir de antigos edifícios, hotéis de todas as estrelas, (já não há pensões), hosteles, habitações de turismo temporário, parques de campismo. Todos os dias chegam aos portos mastodontes que flutuam com arranha-ceús no lombo, carregados de turistas na versão de cruzeiro. As revistas da especialidade, nacionais e estrangeiras, premeiam Portugal como o melhor destino turístico do mundo. Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, Braga, mas também a Nazaré, Viana do Castelo, Idanha a Velha, Belmonte, a Guarda, Beja, Monsaraz, Mértola e Alcoutim, sem esquecer Óbidos e Sintra, Cascais e Peniche são destinos que ninguém pode perder. Já vi escrito e fotografado que Portugal tem a melhor praia do mundo, a melhor paisagem do mundo, a melhor gastronomia do mundo… até o melhor jogador de futebol do mundo. O desemprego, a desigualdade, o abandono escolar e o dos velhos, a precariedade, o salário mínimo… infelizmente, se não são dos piores do mundo, são dos piores da Europa. O turismo aproveita o melhor do mundo para os turistas e deixa o pior do mundo para os indígenas. O colonialismo baseou-se exactamente no mesmo princípio de trocas desiguais!
A propósito de gastronomia, não há dia em que não seja anunciado um evento gastronómico, da alheira à empada, do choco ao bacalhau, do chocolate aos ovos batidos em clara, do bolo rainha à amêndoa tostada, da francesinha ao coirato, do caldo verde às migas, da lampreia às enguias, dos maranhos aos túbaros, das cadelinhas às iscas, do camarão ao lingueirão. Não há espécie vegetal e animal que escape a um festival gastronómico! Estamos como os chineses: tudo o que está debaixo do sol é para comer e festivalar. O problema tem sido escoar o porco nacional, o leite nacional, ou andamos a comer pouco ou andamos a importar demais! Em português do Brasil, Portugal virou estância de férias! Ou um arraial
Não quero ser desmancha-prazeres, mas tenho a vetusta idade que me permite conhecer um pouco de história do meu país, pelo menos do passado recente e alguma coisa da de outros povos. Talvez não sejamos diferentes e esta febre do turismo seja provocada pelo vírus da estirpe que provocou a febre do ouro e infetou milhões de emigrantes europeus que embarcaram, febris para o Eldorado da América. Os pesquisadores do ouro acabaram como desempregados e não como milionários, excepto os que, como os avós de Donald Trump, o candidato a presidente, se aproveitaram da febre do ouro para explorar os crentes, abrindo pensões, bares e casas de alterne para os pesquisadores afogarem em álcool e sexo o desespero pelas minas que fechavam mal se esgotava o veio esgravatado pelas multidões que se abateram sobre ele.
Estas febres só servem para os que aproveitam a maré enquanto ela enche e saem mal começa a descer. Em Portugal já passámos por várias febres, mas nenhuma com a dimensão desta do turismo. Recordo a febre das croissanterias, das lojas de aluguer de vídeo, dos plantadores de peras, de morangos, de Kiwis, dos tupaweres, dos apartamentos e das viagens em timesharing, das férias a prestações em Benidorm, dos investimentos na bolsa do capitalismo popular de Cavaco Silva, que ele se encarregou de dinamitar quando anunciou que andavam a vender gato por lebre. Por acaso os vendedores eram os seus amigos do BPN! Esses safaram-se.
Compreendo que quem não tem cão caça com gato. Portugal nunca foi um país de indústria nem de agricultura desenvolvida, foi sempre uma sociedade de comércio e aventura. Mas, a partir de Pombal, lá se foi criando um aparelho produtivo que resistiu até aos meados dos anos 80. O soarismo da Europa connosco e o cavaquismo do dinheiro fácil, destruíram o aparelho produtivo com o verdadeiro programa da União Económica: colocar os países mais pequenos e frágeis a restituir os empréstimos aos prestamistas com juros à cabeça e criar uma dívida em permanente crescimento, através da sempre maior necessidade de importações, resultante da sempre maior destruição da capacidade de produzir internamente. Dinheiro barato e fácil para poder dizer ao pagode: importar é mais barato que produzir! O futuro está nos serviços, diziam comentadores tão conceituados como os de hoje, sendo que alguns são os mesmos. O objectivo era absorver os desempregados da indústria e da agricultura, atomizando a força de trabalho, fazendo do desempregado um patrão entregue à sua sorte – os serviços assentam em micro empresas, empresas familiares, trabalhadores precários, logo baixos salários, baixos custos sociais, pequenos investimentos bancários, mas muito desmultiplicados, o que diminui o risco. O típico menu do liberalismo. Onde havia um operário ou um agricultor, passou a existir um dono de café-restaurante, um vendedor de pipocas, uma rapariga da vida com anúncio no jornal e número de contribuinte.
A febre do turismo, tem todas as condições para ser mais uma ilusão e causar mais um desastre económico e social. Como estamos empenhados, vendemos barato. Vendemos tudo barato, o trabalho, que é servil e precário, os terrenos, o património, e, principalmente, vendemos, ou alienamos o que resta de qualidade. A gastronomia, por exemplo. É evidente que a gastronomia dos locais para turistas só é boa para os turistas. Quando eles se aperceberem que, na maioria dos casos, estão a comer mal e porcamente, deixam de vir. Quando o nosso património estiver tão vulgarizado que já não haja multidões para ver os Jerónimos ou a Torre de Belém, deixam de vir.
O turismo é a mais frágil das actividades económicas, porque está dependente do bom funcionamento das economias dos países a montante, que produzem bens e serviços reais. Está dependente dos que fabricam automóveis, motores, aviões, computadores, dos que extraem e exportam matérias primas essenciais, dos cereais ao petróleo, dos que lhes acrescentam valor. Está dependente de casas demasiado aleatórias, um atentado, um cataclismo, uma epidemia, por exemplo. O turismo devia ser uma actividade complementar na economia nacional, e não a actividade principal.
A atual febre do turismo, com a qual todos os agentes indígenas parecem tão contentes, assenta – para piorar as perspectivas – no turismo de massas – pacotes baratos, viagens low cost, hotel com preços esmagados, circuitos turísticos padronizados. Este modelo funciona em Londres, em Paris, em Roma, um pouco em Berlim, em Nova Iorque, em São Francisco, mas não pode funcionar em Portugal, que tem mais ou menos a mesma população, mas é um país disperso por 89 mil quilómetros quadrados, enquanto essas metrópoles são pontos de atração concentrados e instalados no topo da cadeia de geração de riqueza de potências como a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, a Itália ou os Estados Unidos.
Bastará um agravamento da crise na Europa e nos Estados Unidos – e ela é tão provável – e os turistas desaparecem de um dia para o outro, com muito maior velocidade do que aquela com que chegaram Então, infelizmente, ouviremos os mesmos que hoje estão encantados a carpir mágoas e a baixar ainda mais os preços, a despedir, a diminuir a qualidade, a pedir apoios… com os tuk tuk a enferrujar, os bares e mini bares encerrados, os jovens que se meteram na aventura de abrir um restaurante a emigrarem.
Portugal está na moda, mas todas as modas passam de moda. O turismo tem pés de barro e devíamos encontrar alternativas para ele antes de desabar…

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