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quarta-feira, 6 de abril de 2016

Um Porto para “Inglês ver”… e consumir, por Pedro Jorge Pereira*

Um Porto para “Inglês ver”… e consumir
por Pedro Jorge Pereira*, Abril de 2016


Nos anos mais recentes o Porto tem assistido a um aumento sem precedentes da actividade turística na cidade e também na própria região envolvente.
No contexto ainda considerado de “retracção” económica actual, esse crescimento é louvado por quase todos e perspectivado como a “galinha dos ovos de ouro” da cidade e do país.
O “turismo” é quase idolatrado como uma “vaca sagrada” e todo o investimento que “rime” de alguma forma com turismo é aplaudido de forma praticamente unânime pelos mais diversos “agentes” e sectores.
O turismo é pois a “panaceia” para todos os “males” da cidade, alguns deles bem conhecidos e agudizados nos últimos anos pela política “austeritária” do anterior governo: pobreza, exclusão, desemprego, etc.
Mas, e roçando quase a “heresia” ao questionar tão sagrado “Deus”, será que de facto o turismo é a panaceia de todos os males da cidade? Sendo ainda mais ousado: Será que não estará o próprio turismo a contribuir para o agudizar e mesmo para o surgimento de diversos problemas consideráveis?
Antes de acrescentar qualquer outro elemento de reflexão devo salientar que não tenho nada contra o turismo. Aliás, gosto imenso de, ao percorrer as ruas da nossa bela cidade, escutar os idiomas de diferentes países e culturas. Gosto dessa dimensão cosmopolita e intercultural da cidade. O que me deixa bastante triste, nomeadamente à noite é, ao percorrer essas mesmas ruas do centro histórico, já quase não escutar pessoas a falar português com o típico sotaque tripeiro. A principal razão para não as escutar prende-se com o facto de elas serem cada vez menos. Estamos a caminhar para a ridícula situação de os tripeiros a viver no centro histórico estarem a tornar-se numa “espécie em vias de extinção”. Analisando os dados dos últimos censos demográficos (2011) constatamos que em cerca de 10 anos (relativamente a 2001portanto, data dos anteriores censos) essa redução se cifrou na ordem dos 30%! Ou seja, estamos a falar na perda de cerca de 1/3 da população em cerca de 10 anos!
Fenómeno tanto mais grave quando verificamos que essa perda corresponde a uma tendência já fortemente acentuada nas últimas duas ou três décadas anteriores.
Facto tanto mais grave se considerarmos, do ponto de vista histórico, que as únicas situações em que este fenómeno de acentuado decrescimento aconteceu foram situações “catastróficas” de graves epidemias ou de guerra. Talvez a “gentrificação” da cidade possa ser considerada, ela própria, como uma espécie de epidemia.
E é nesta fase que colocamos a questão: mas em que medida é o que “turismo” se relaciona com esses fenómenos?
O turismo não é, afinal de contas, uma boa forma de incentivar a requalificação do degradado património habitacional da cidade e muito em particular do centro histórico?
Bom, em parte pode ser, em parte é, mas noutra parte não menos menosprezável o turismo é, actualmente, um dos fenómenos que mais contribui para uma acentuada inflação dos preços das habitações no centro histórico. Face ao aumento da procura turística ocorre também um aumento da oferta em termos de alojamento. Aumento esse que atinge proporções tais que torna praticamente impossível aos habitantes locais poderem continuar a habitar o centro histórico. Ou aos não locais das periferias, nomeadamente aos jovens de classes sociais que não as mais “elevadas”, de poderem ir viver para o centro histórico.
Então, muitos dos poucos inquilinos “tripeiros” que ainda permanecem no centro histórico são, de alguma forma, “convidados” a sair para que essas habitações possam ser convertidas em actividade turística e assim possam gerar receitas mais “apetitosas” para os proprietários dos imóveis. Dessa forma os hostels, hotéis e, sobretudo, os chamados “apartamentos turísticos” têm surgido um pouco como cogumelos pela cidade e muito em particular no centro histórico.
Por exemplo num artigo de 28 de Janeiro de 2016 podemos verificar que “O Porto tem actualmente 30 pedidos de licenciamento para novos hotéis”. (1)
O principal problema é que o centro histórico está-se a tornar num local sem “habitantes locais”. O principal problema não é termos uma cidade visitada por turistas, mas sim, e cada vez mais, uma cidade cada vez mais despojada de habitantes locais e povoada… só de turistas.
Uma outra dimensão relevante ou, diria antes, preocupante, prende-se com a vertente do comércio. Tenho vindo a observar e estudar um pouco o “fenómeno” do “Comércio Tradicional” na cidade do Porto. O Porto ao longo da história tem vindo a ser uma das cidades do país com maior tradição mercantil e comerciante. O Comércio Tradicional, nomeadamente no que diz respeito a diversos estabelecimentos comerciais que fazem parte do património cultural e arquitectónico da cidade, tem vindo também a desaparecer a um ritmo muito acentuado.
No seu lugar vemos surgir lojas de souvenirs turísticos “made in china” ou então lojas gourmet para “Inglês” ver e consumir. Note-se que com “inglês” nos estamos a referir a qualquer turista “endinheirado”, sendo habitualmente da Alemanha, França, Estados Unidos, Japão, etc., ou mesmo turistas provenientes das classes mais altas de países chamados de “economias emergentes” como a China ou Índia.
Ao percorrer, por exemplo, a Rua do Almada, deparo-me com uma antiga “tabacaria” do centro transformada em “Loja Gourmet”, com uma loja da “Editora Nacional” convertida também numa loja gourmet no piso térreo de mais um recente hotel, com uma antiga papelaria quase centenária transformada em loja de souvenirs foleiros “made in china” e poderia continuar por aí fora…
Creio que a maior parte das pessoas não tem noção, ou pára sequer por um instante, para reflectir sobre a tremenda perda que significa o desaparecimento irreversível de cada um desses estabelecimentos. Lugares de história e de estórias… lugares onde se escrevia e replicava a memória imaterial local… locais repletos de autenticidade, de essência, de vida. Lugares que estavam longe de se cingir à sua mera função “comercial” mas, antes até mesmo disso, lugares que podemos considerar como espaços culturais característicos.
É evidente que, da mesma forma como não pode ser considerada como a “panaceia” para todos os males (que é um pouco o que está a suceder), o “turismo de massas” também não é o “culpado” de tudo… mas a dimensão das responsabilidades que tem neste quadro mais amplo não pode ser menosprezada …
As próprias políticas institucionais de reabilitação têm ido muito mais no sentido de criar um Porto “gourmetizado” do que propriamente no sentido de criar um Porto “para todos”, nomeadamente para os próprios locais. Aquilo que se pretende (e se está a conseguir) impor é um Porto “chique” ao agrado de quem vier provido de um elevado poder de compra … um Porto que se sobrepõe a um Porto popular, tradicional, característico. Também todo um património “imaterial” feito de estórias, vivências, memória que desaparece.
Observe-se por exemplos os diversos quarteirões já “recuperados” (para quem?) pela Sociedade de Reabilitação Urbana.
Os próprios nativos são considerados como uma “fauna” incómoda que convém manter escondida nas periferias… para o centro são bem-vindos somente aqueles que souberem servir e agradar ao consumidor turístico. Por vezes em postos de trabalho também eles de alguma forma precários.
No fundo, a principal mensagem que gostaria de deixar, é que o Porto “verdadeiro”, “autêntico”, o Porto “Porto”, está a desaparecer aos poucos mas, ao mesmo tempo, a um ritmo vertiginoso.
A integração da população não local e o desenvolvimento da actividade turística deveria ser feita de forma a respeitar e não a constituir uma ameaça para as populações e identidade local.
De resto, esta reflexão não pretende ser um “manifesto” contra o turismo mas somente, e sobretudo, uma mensagem para relembrar que há um ponto a partir do qual algo se torna claramente excessivo e muitos dos seus efeitos e potencial positivo começam a ser sufocados por tudo aquilo que tem de potencialmente negativo. E é isso que, muito claramente, está a acontecer no Porto (e não só claro, está a acontecer no Porto como em muitos outros locais pelo mundo fora).
Esta reflexão também não pretende colocar em causa muito do que tem sido feito de positivo devido ao desenvolvimento turístico na cidade… mas serve simplesmente para recordar… e essa noção parece andar tão esquecida… que o Porto é muito mais do que o vinho do Porto, do que os cruzeiros no Douro e do que a gastronomia… o Porto é muito mais do que isso mas parece estar a ser reduzido a essas imagens/postais turísticos para “Inglês ver” e, sobretudo “consumir”.
O Porto é as vivências, as memórias “vivas” da cidade, a simplicidade e autenticidade das gentes, as tradições, as associações de bairro (as poucas que ainda existem e resistem), as estórias que os “últimos” antigos ainda guardam e preservam… estórias e memórias que tendem a extinguir-se quando também eles partem … para um bairro nos arredores ou quando partem deste mundo.
O Porto não é, ou pelo menos não deveria ser, pelo menos assim acredito, um mero “pacote turístico” para estrangeiro consumir …
Mas é precisamente nisso que está a ser convertido …
O Porto é aquele Porto “único” que ainda resiste mas que vai gradualmente desaparecendo à medida que cada habitante parte, que cada loja tradicional encerra, que cada estória fica para sempre esquecida nas brumas da memória.
O Porto não é esse lugar onde os próprios “tripeiros” não são bem-vindos a não ser que tenham alguma finalidade nesse propósito magnânimo de agradar ao “Deus” turista … esse lugar onde a escala de prioridades se encontra profundamente deturpada.
O Porto não pode ser essa cidade cada vez menos “Porto”… naquilo que de mais autêntico ainda tem e possui: sobretudo as “geografias humanas e populares”.
A este ritmo, e se a actual situação persistir, vai restar muito pouco Porto autêntico… vamos ter um óptimo “Porto” para “consumo externo” mas um Porto cada vez mais despojado de autenticidade e de… alma. Mais grave ainda: um Porto despojado de todo o seu valor humano.
Acredito que não é esse Porto que queremos, mas é precisamente esse Porto que estamos a ver ser criado.
Longe de pretender numa simples reflexão abordar todas as dimensões e aspectos mais profundos contidos nesse fenómeno mais amplo e algo complexo que é a “gentrificação”… não posso contudo deixar de lançar este repto e “grito de alerta” que, volto a salientar, não é um manifesto contra o turismo em si mesmo. Simplesmente ainda quero continuar a acreditar que, apesar de tudo, um outro modelo e “escala” de turismo é possível.
Na minha opinião, a linha que separa o ponto no qual o turismo é algo de positivo para a economia e cultura da cidade do ponto onde o turismo se torna em tudo aquilo que se está a tornar no Porto (e noutros locais um pouco por todo o mundo), situa-se na diferença entre o turismo contribuir para os visitantes poderem conhecer e experienciar uma determinada realidade local/cultural e o turismo se sobrepor a essa mesma realidade, contribuindo para o seu desaparecimento ou descaracterização.
Á medida que o turismo cresce a um ritmo demasiadamente acelerado há uma tendência para, com muita facilidade, esse ponto ser rapidamente ultrapassado. É precisamente isso que tem vindo a acontecer no Porto.
Qual é a solução? Proibir o turismo? Impor quotas? Bom, pessoalmente creio que solução passa pelo investimento público em equipamentos públicos para a população local e, sobretudo, por uma política de habitação orientada para a reabilitação do património arquitectónico local com “custos controlados” para a população local. Lançando simultaneamente medidas de atracção da população e de pequenos negócios diversificados para o centro cidade. Lançando políticas públicas de apoio às associações locais.
Infelizmente, pelo menos daquilo que tenho conhecimento, pouco ou mesmo nada está a ser feito nesse sentido.
E a questão é que se não for feito hoje, amanhã já será, muito provavelmente, tarde demais.
Por muito importantes que possam ser todos os euros e dólares trazidos com o boom do turismo a verdade é que o “dinheiro” do turismo deveria ser um meio para o desenvolvimento da economia local (e seria interessante estudar em que medida é que estará efectivamente, ou não, a ser) e não tornar-se ele próprio no “fim” derradeiro de toda a vida e actividade da cidade. Ameaçando nomeadamente toda a actividade económica e social “além-turismo”.
Já para não falar que se está a criar uma dependência extremamente perigosa: Se um dia os fluxos turísticos mudarem (como regularmente acontece) de “direcção” o que irá acontecer a toda uma economia que se tornou excessivamente dependente desse mesmo turismo?
Não tenho a resposta para todas as questões, nomeadamente para a questão de “por onde devemos ir?”. Tenho obviamente algumas ideias e possíveis sugestões, assim como os próprios locais terão certamente (e será que alguém está interessado em os ouvir?), mas não tenho grandes dúvidas de que não devemos continuar a ir pelos caminhos que têm sido seguidos de forma, diria, praticamente “cega”. Será que há mais alguém interessado em ver essa realidade? Apesar daquilo que a realidade parece querer evidenciar nos levar a acreditar no oposto, gosto de continuar a acreditar que sim.

* Pedro Jorge Pereira
Formador e Activista Eco-Social
Dinamizador, entre outros, do Projecto Terramote351 – Desenvolvimento, Formação e Turismo Eco-Social.

Correcção Ortográfica:
Cristina Gomes

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Pedro Jorge Pereira


(1) Agência Lusa (28 de Janeiro de 2016) Multiplicação de hotéis no Porto pode pôr em causa Património da Humanidade. [Em linha]. Disponível em <https://www.publico.pt/local/noticia/secretaria-de-estado-alertou-para-o-numero-de-hoteis-no-porto-e-apoiou-candidatura-das-caves-de-gaia-a-patrimonio-mundial-1721711> [Consultado em 28 de Janeiro de 2016]