Um
Porto para “Inglês ver”… e consumir
por
Pedro Jorge Pereira*, Abril de
2016
Nos
anos mais recentes o Porto tem assistido a um aumento sem precedentes
da actividade turística na cidade e também na própria região
envolvente.
No
contexto ainda considerado de “retracção” económica actual,
esse crescimento é louvado por quase todos e perspectivado como a
“galinha dos ovos de ouro” da cidade e do país.
O
“turismo” é quase idolatrado como uma “vaca sagrada” e todo
o investimento que “rime” de alguma forma com turismo é
aplaudido de forma praticamente unânime pelos mais diversos
“agentes” e sectores.
O
turismo é pois a “panaceia” para todos os “males” da cidade,
alguns deles bem conhecidos e agudizados nos últimos anos pela
política “austeritária” do anterior governo: pobreza, exclusão,
desemprego, etc.
Mas,
e roçando quase a “heresia” ao questionar tão sagrado “Deus”,
será que de facto o turismo é a panaceia de todos os males da
cidade? Sendo ainda mais ousado: Será que não estará o próprio
turismo a contribuir para o agudizar e mesmo para o surgimento de
diversos problemas consideráveis?
Antes
de acrescentar qualquer outro elemento de reflexão devo salientar
que não tenho nada contra o turismo. Aliás, gosto imenso de, ao
percorrer as ruas da nossa bela cidade, escutar os idiomas de
diferentes países e culturas. Gosto dessa dimensão cosmopolita e
intercultural da cidade. O que me deixa bastante triste, nomeadamente
à noite é, ao percorrer essas mesmas ruas do centro histórico, já
quase não escutar pessoas a falar português com o típico sotaque
tripeiro. A principal razão para não as escutar prende-se com o
facto de elas serem cada vez menos. Estamos a caminhar para a
ridícula situação de os tripeiros a viver no centro histórico
estarem a tornar-se numa “espécie em vias de extinção”.
Analisando os dados dos últimos censos demográficos (2011)
constatamos que em cerca de 10 anos (relativamente a 2001portanto,
data dos anteriores censos) essa redução se cifrou na ordem dos
30%! Ou seja, estamos a falar na perda de cerca de 1/3 da população
em cerca de 10 anos!
Fenómeno
tanto mais grave quando verificamos que essa perda corresponde a uma
tendência já fortemente acentuada nas últimas duas ou três
décadas anteriores.
Facto
tanto mais grave se considerarmos, do ponto de vista histórico, que
as únicas situações em que este fenómeno de acentuado
decrescimento aconteceu foram situações “catastróficas” de
graves epidemias ou de guerra. Talvez a “gentrificação” da
cidade possa ser considerada, ela própria, como uma espécie de
epidemia.
E
é nesta fase que colocamos a questão: mas em que medida é o que
“turismo” se relaciona com esses fenómenos?
O
turismo não é, afinal de contas, uma boa forma de incentivar a
requalificação do degradado património habitacional da cidade e
muito em particular do centro histórico?
Bom,
em parte pode ser, em parte é, mas noutra parte não menos
menosprezável o turismo é, actualmente, um dos fenómenos que mais
contribui para uma acentuada inflação dos preços das habitações
no centro histórico. Face ao aumento da procura turística ocorre
também um aumento da oferta em termos de alojamento. Aumento esse
que atinge proporções tais que torna praticamente impossível aos
habitantes locais poderem continuar a habitar o centro histórico. Ou
aos não locais das periferias, nomeadamente aos jovens de classes
sociais que não as mais “elevadas”, de poderem ir viver para o
centro histórico.
Então,
muitos dos poucos inquilinos “tripeiros” que ainda permanecem no
centro histórico são, de alguma forma, “convidados” a sair para
que essas habitações possam ser convertidas em actividade turística
e assim possam gerar receitas mais “apetitosas” para os
proprietários dos imóveis. Dessa forma os hostels, hotéis e,
sobretudo, os chamados “apartamentos turísticos” têm surgido um
pouco como cogumelos pela cidade e muito em particular no centro
histórico.
Por
exemplo num artigo de 28 de Janeiro de 2016 podemos verificar que “O
Porto tem actualmente 30 pedidos de licenciamento para novos hotéis”.
(1)
O
principal problema é que o centro histórico está-se a tornar num
local sem “habitantes locais”. O principal problema não é
termos uma cidade visitada por turistas, mas sim, e cada vez mais,
uma cidade cada vez mais despojada de habitantes locais e povoada…
só de turistas.
Uma
outra dimensão relevante ou, diria antes, preocupante, prende-se com
a vertente do comércio. Tenho vindo a observar e estudar um pouco o
“fenómeno” do “Comércio Tradicional” na cidade do Porto. O
Porto ao longo da história tem vindo a ser uma das cidades do país
com maior tradição mercantil e comerciante. O Comércio
Tradicional, nomeadamente no que diz respeito a diversos
estabelecimentos comerciais que fazem parte do património cultural e
arquitectónico da cidade, tem vindo também a desaparecer a um ritmo
muito acentuado.
No
seu lugar vemos surgir lojas de souvenirs turísticos “made in
china” ou então lojas gourmet para “Inglês” ver e consumir.
Note-se que com “inglês” nos estamos a referir a qualquer
turista “endinheirado”, sendo habitualmente da Alemanha, França,
Estados Unidos, Japão, etc., ou mesmo turistas provenientes das
classes mais altas de países chamados de “economias emergentes”
como a China ou Índia.
Ao
percorrer, por exemplo, a Rua do Almada, deparo-me com uma antiga
“tabacaria” do centro transformada em “Loja Gourmet”, com uma
loja da “Editora Nacional” convertida também numa loja gourmet
no piso térreo de mais um recente hotel, com uma antiga papelaria
quase centenária transformada em loja de souvenirs foleiros “made
in china” e poderia continuar por aí fora…
Creio
que a maior parte das pessoas não tem noção, ou pára sequer por
um instante, para reflectir sobre a tremenda perda que significa o
desaparecimento irreversível de cada um desses estabelecimentos.
Lugares de história e de estórias… lugares onde se escrevia e
replicava a memória imaterial local… locais repletos de
autenticidade, de essência, de vida. Lugares que estavam longe de se
cingir à sua mera função “comercial” mas, antes até mesmo
disso, lugares que podemos considerar como espaços culturais
característicos.
É
evidente que, da mesma forma como não pode ser considerada como a
“panaceia” para todos os males (que é um pouco o que está a
suceder), o “turismo de massas” também não é o “culpado”
de tudo… mas a dimensão das responsabilidades que tem neste quadro
mais amplo não pode ser menosprezada …
As
próprias políticas institucionais de reabilitação têm ido muito
mais no sentido de criar um Porto “gourmetizado” do que
propriamente no sentido de criar um Porto “para todos”,
nomeadamente para os próprios locais. Aquilo que se pretende (e se
está a conseguir) impor é um Porto “chique” ao agrado de quem
vier provido de um elevado poder de compra … um Porto que se
sobrepõe a um Porto popular, tradicional, característico. Também
todo um património “imaterial” feito de estórias, vivências,
memória que desaparece.
Observe-se
por exemplos os diversos quarteirões já “recuperados” (para
quem?) pela Sociedade de Reabilitação Urbana.
Os
próprios nativos são considerados como uma “fauna” incómoda
que convém manter escondida nas periferias… para o centro são
bem-vindos somente aqueles que souberem servir e agradar ao
consumidor turístico. Por vezes em postos de trabalho também eles
de alguma forma precários.
No
fundo, a principal mensagem que gostaria de deixar, é que o Porto
“verdadeiro”, “autêntico”, o Porto “Porto”, está a
desaparecer aos poucos mas, ao mesmo tempo, a um ritmo vertiginoso.
A
integração da população não local e o desenvolvimento da
actividade turística deveria ser feita de forma a respeitar e não a
constituir uma ameaça para as populações e identidade local.
De
resto, esta reflexão não pretende ser um “manifesto” contra o
turismo mas somente, e sobretudo, uma mensagem para relembrar que há
um ponto a partir do qual algo se torna claramente excessivo e muitos
dos seus efeitos e potencial positivo começam a ser sufocados por
tudo aquilo que tem de potencialmente negativo. E é isso que, muito
claramente, está a acontecer no Porto (e não só claro, está a
acontecer no Porto como em muitos outros locais pelo mundo fora).
Esta
reflexão também não pretende colocar em causa muito do que tem
sido feito de positivo devido ao desenvolvimento turístico na
cidade… mas serve simplesmente para recordar… e essa noção
parece andar tão esquecida… que o Porto é muito mais do que o
vinho do Porto, do que os cruzeiros no Douro e do que a gastronomia…
o Porto é muito mais do que isso mas parece estar a ser reduzido a
essas imagens/postais turísticos para “Inglês ver” e, sobretudo
“consumir”.
O
Porto é as vivências, as memórias “vivas” da cidade, a
simplicidade e autenticidade das gentes, as tradições, as
associações de bairro (as poucas que ainda existem e resistem), as
estórias que os “últimos” antigos ainda guardam e preservam…
estórias e memórias que tendem a extinguir-se quando também eles
partem … para um bairro nos arredores ou quando partem deste mundo.
O
Porto não é, ou pelo menos não deveria ser, pelo menos assim
acredito, um mero “pacote turístico” para estrangeiro consumir …
Mas
é precisamente nisso que está a ser convertido …
O
Porto é aquele Porto “único” que ainda resiste mas que vai
gradualmente desaparecendo à medida que cada habitante parte, que
cada loja tradicional encerra, que cada estória fica para sempre
esquecida nas brumas da memória.
O
Porto não é esse lugar onde os próprios “tripeiros” não são
bem-vindos a não ser que tenham alguma finalidade nesse propósito
magnânimo de agradar ao “Deus” turista … esse lugar onde a
escala de prioridades se encontra profundamente deturpada.
O
Porto não pode ser essa cidade cada vez menos “Porto”… naquilo
que de mais autêntico ainda tem e possui: sobretudo as “geografias
humanas e populares”.
A
este ritmo, e se a actual situação persistir, vai restar muito
pouco Porto autêntico… vamos ter um óptimo “Porto” para
“consumo externo” mas um Porto cada vez mais despojado de
autenticidade e de… alma. Mais grave ainda: um Porto despojado de
todo o seu valor humano.
Acredito
que não é esse Porto que queremos, mas é precisamente esse Porto
que estamos a ver ser criado.
Longe
de pretender numa simples reflexão abordar todas as dimensões e
aspectos mais profundos contidos nesse fenómeno mais amplo e algo
complexo que é a “gentrificação”… não posso contudo deixar
de lançar este repto e “grito de alerta” que, volto a salientar,
não é um manifesto contra o turismo em si mesmo. Simplesmente ainda
quero continuar a acreditar que, apesar de tudo, um outro modelo e
“escala” de turismo é possível.
Na
minha opinião, a linha que separa o ponto no qual o turismo é algo
de positivo para a economia e cultura da cidade do ponto onde o
turismo se torna em tudo aquilo que se está a tornar no Porto (e
noutros locais um pouco por todo o mundo), situa-se na diferença
entre o turismo contribuir para os visitantes poderem conhecer e
experienciar uma determinada realidade local/cultural e o turismo se
sobrepor a essa mesma realidade, contribuindo para o seu
desaparecimento ou descaracterização.
Á
medida que o turismo cresce a um ritmo demasiadamente acelerado há
uma tendência para, com muita facilidade, esse ponto ser rapidamente
ultrapassado. É precisamente isso que tem vindo a acontecer no
Porto.
Qual
é a solução? Proibir o turismo? Impor quotas? Bom, pessoalmente
creio que solução passa pelo investimento público em equipamentos
públicos para a população local e, sobretudo, por uma política de
habitação orientada para a reabilitação do património
arquitectónico local com “custos controlados” para a população
local. Lançando simultaneamente medidas de atracção da população
e de pequenos negócios diversificados para o centro cidade. Lançando
políticas públicas de apoio às associações locais.
Infelizmente,
pelo menos daquilo que tenho conhecimento, pouco ou mesmo nada está
a ser feito nesse sentido.
E
a questão é que se não for feito hoje, amanhã já será, muito
provavelmente, tarde demais.
Por
muito importantes que possam ser todos os euros e dólares trazidos
com o boom do turismo a verdade é que o “dinheiro” do turismo
deveria ser um meio para o desenvolvimento da economia local (e seria
interessante estudar em que medida é que estará efectivamente, ou
não, a ser) e não tornar-se ele próprio no “fim” derradeiro de
toda a vida e actividade da cidade. Ameaçando nomeadamente toda a
actividade económica e social “além-turismo”.
Já
para não falar que se está a criar uma dependência extremamente
perigosa: Se um dia os fluxos turísticos mudarem (como regularmente
acontece) de “direcção” o que irá acontecer a toda uma
economia que se tornou excessivamente dependente desse mesmo turismo?
Não
tenho a resposta para todas as questões, nomeadamente para a questão
de “por onde devemos ir?”. Tenho obviamente algumas ideias e
possíveis sugestões, assim como os próprios locais terão
certamente (e será que alguém está interessado em os ouvir?), mas
não tenho grandes dúvidas de que não devemos continuar a ir pelos
caminhos que têm sido seguidos de forma, diria, praticamente “cega”.
Será que há mais alguém interessado em ver essa realidade? Apesar
daquilo que a realidade parece querer evidenciar nos levar a
acreditar no oposto, gosto de continuar a acreditar que sim.
*
Pedro Jorge Pereira
Formador
e Activista Eco-Social
Dinamizador,
entre outros, do Projecto Terramote351 – Desenvolvimento, Formação
e Turismo Eco-Social.
Correcção
Ortográfica:
Cristina
Gomes
Terramote351
- Desenvolvimento, Formação e Turismo Eco-social
Email:
terramote351@gmail.com
Grande
Porto (Terramote351) - Ambiente, Cidadania, Cultura e Reflexão no
Google Groups:
https://groups.google.com/forum/#!forum/terramote351_grandeporto
Grande
Porto (Terramote351) - Ambiente, Cidadania, Cultura e Reflexão no
Facebook: https://www.facebook.com/groups/586697301358762
Pedro
Jorge Pereira
(1)
Agência Lusa (28 de Janeiro de 2016) Multiplicação de hotéis no
Porto pode pôr em causa Património da Humanidade. [Em linha].
Disponível em
<https://www.publico.pt/local/noticia/secretaria-de-estado-alertou-para-o-numero-de-hoteis-no-porto-e-apoiou-candidatura-das-caves-de-gaia-a-patrimonio-mundial-1721711>
[Consultado em 28 de Janeiro de 2016]