Os
discursos e as notícias sobre a recessão económica, sobre a
austeridade e os seus efeitos, sobre a espiral de empobrecimento e
retrocesso ao nível dos vectores de desenvolvimento estão na ordem
do dia.
Apesar
disso, talvez não seja assim tão frequente conseguirmos encontrar
reflexões, quer a nível de imprensa, quer a nível dos diálogos de
“rua”, sobre as verdadeiras causas, e as causas mais profundas,
que contribuíram e contribuem em larga medida para esse cenário de
dita “crise”.
Um
dos aspectos que estará, porventura, mais subestimado e que
raramente é tido em consideração, levando em linha de conta por
exemplo as suas repercussões económicas, prende-se com o processo
de brutal “desaparecimento” dos modelos de Comércio Familiar e
de Pequena/Média Escala - CFPME. O comércio tradicional tem vindo a
caminhar a passos largos para uma situação de quase extinção.
Considere-se por exemplo os seguintes dados: “O
primeiro hipermercado em Portugal surgiu a 10 de Dezembro de 1985. Ao
longo das duas décadas e meia que entretanto passaram, abriram mais
74 unidades, o comércio tradicional perdeu mais de 70% da sua
importância e fecharam cerca de 24 mil lojas.”(1)
Ou
seja, considerando a velocidade e a escala de encerramento de
pequenas lojas, podemos dizer que qualquer dia já não restam lojas
de comércio tradicional (Segundo
a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), ainda
com base em dados da AC Nielsen, havia pouco mais de 18 mil lojas de
comércio em Portugal em 2009 e em 1985 existiam mais de 42 mil.)”
(2), caso algo de muito determinado e efectivo não seja feito no
sentido de inverter o fenómeno. E a realidade é que pouco, ou em
muitos casos nada, está a ser feito para travar esse processo.
Por
outro lado é fundamental salientar que existem inúmeras dimensões
e aspectos que não são passíveis de conter na dimensão meramente
estatística da questão.
É
fundamental considerarmos que o comércio é uma actividade
praticamente intrínseca e paralela à própria evolução da
história da humanidade.
O
comércio -
e
essencialmente estamos-nos a referir a um Comércio Familiar e de
Pequena/Média Escala (aquele que predominou, para não dizermos que
seria até então o único modelo existente, na história da
humanidade nos últimos séculos) - foi e é uma actividade crucial
para a vitalidade económica e por inerência social das comunidades
locais.
Inicialmente
os “burgos” eram naturalmente os locais onde se desenvolvia o
grosso da actividade comercial e deram origem a uma classe social
designada de "burguesia", (o que representou de certa forma
uma ruptura com os modelos tradicionais cingidos a uma lógica feudal
que dividia as classes entre nobreza – ou os que “exploravam” –
e o povo – os que eram, e de que maneira, “explorados”.
Entrando na equação também o “clero” que, em larga medida,
constituía uma terceira classe que pertencia mais à primeira ordem
– os que exploravam, ainda que com outras nuances – do que
certamente à segunda – os que eram “explorados”.).
Estamos
a falar sobretudo de um comércio essencialmente de bens de primeira
necessidade (alimentos – pão, frutos, legumes, etc. – madeiras,
etc.) mas também de bens produzidos pelos diferentes ofícios
existentes então (ferreiros, sapateiros, pelames, etc.). Pode-se
afirmar que era um comércio predominantemente “directo”, em que
o produtor, ou artífice, vendia directamente ao “consumidor”.
Era portanto uma realidade em que a existência de intermediários,
ou o que hoje chamaríamos de retalhistas, era ainda algo marginal.
As coisas foram-se modificando ao longo da história, nomeadamente
com o surgimento da já mencionada classe mercadora, a “burguesia”,
mas começaram a modificar-se ainda mais acentuadamente na Revolução
Industrial. Ainda assim, e recorrendo à própria história da cidade
do Porto, podemos afirmar que a produção “em massa"
ou
“em série” – que acabou em muitos casos por ser o princípio
do fim de vários desses ofícios tradicionais e artesanais – não
alterou radicalmente, contudo, o modelo de produção/consumo.
Ou
seja, houve um incremento da actividade comercial em termos do
aparecimento de novos modelos de comercialização, começaram a
surgir mais lojas um pouco em contraponto ao modelo tradicional de
produção e venda directamente nas próprias “oficinas”, ou
através de feiras e mercados mais ou menos “oficiais”, mas essas
lojas mantinham um carácter essencialmente local (não obstante
algumas delas efectuaram vendas um pouco para todo o país e por
vezes até para outros países), familiar e algo que se poderá hoje
em dia classificar de … tradicional. Ou seja, estamos a falar de
estabelecimentos que, regra geral, eram propriedade de uma única
pessoa, ou de uma família. E
que comercializavam
essencialmente
no local, “sobretudo na cidade” onde estavam, sendo minoritárias
as situações de estabelecimentos com sucursais e delegações a
nível nacional ou sequer regional (o que significa que estamos a
falar de um comércio com um forte vínculo à comunidade local). E
estamos a falar de um comércio principalmente especializado numa
determinada área, num determinado sector.
Obviamente
que as transformações mais acentuadas deste género de estrutura de
comércio aconteceram nos ditos países industrializados sobretudo
após a II
Grande Guerra Mundial.
Em Portugal aconteceu
sobretudo
a partir da década de 80, muito em particular com a adesão (com
tudo o que isso implicou a vários níveis) à Comunidade Económica
Europeia – C.E.E.
O
comércio - e num período de tempo que podemos considerar, do ponto
de vista histórico, bastante curto - deixou de ser de uma matriz
essencialmente local, familiar e de relativamente “pequena escala”
para passar a ser de uma matriz essencialmente globalizada,
corporativa e de grande escala (o que não significa que, muitas
vezes, apesar de nos estarmos a referir a grupos de retalho
gigantescos, a maior parte do capital gerado não acabe por reverter
para um grupo muito restrito de indivíduos bilionários).
Existem
portanto diversos aspectos que permitem efectuar uma clara distinção
entre um modelo de comércio (tradicional e/ou de pequena escala) e o
outro (grandes superficies e grande retalho).
De
entre esses vários aspectos aquele que merece desde logo especial
destaque prende-se com o factor económico, sobretudo pela forma
leviana e até falaciosa como ele é geralmente abordado.
É
rara a “notícia” (como quem diz … chamar notícia a textos que
de rigor e reflexão jornalística pouco ou nada têm …) que não
destaca o número de postos de trabalho gerados e o investimento
efectuado pelo grupo económico promotor do empreendimento em causa
(seja ele “shopping”, “hiper”, “super de cadeia”, etc.).
Ora
bem, sendo que a criação desses postos de trabalho é um facto, a
questão que urge colocar é: Foi/é em alguma dessas circunstâncias
efectuado qualquer espécie de estudo que permita avaliar o impacto
da abertura e concorrência directa desse investimento de “grande
superfície/retalho” ao nível do encerramento de Lojas de Comércio
Familiar e de Pequena/Média Escala - CFPME? Nomeadamente número de
postos de trabalho perdidos (irremediavelmente)?
Seria
muito interessante se algum estudo desse género fosse realizado e
pudesse ser contabilizado e efectuado um
balanço
entre postos de trabalho criados Vs postos de trabalho “eliminados”.
Não
me restam muitas dúvidas que em inúmeras situações, já para não
dizer na quase totalidade, iria-se chegar facilmente à conclusão
que a “miragem” dos postos de trabalho criados não passa disso
mesmo e que, bem pelo contrário, o grande comércio
acaba
por ter um impacto muito negativo ao nível do “emprego”.
Contribuindo pois para o agravamento do desemprego, como temos vindo
a assistir desde que o comércio de grande escala se tem vindo a
disseminar e a apropriar do espaço económico (ao que acrescentaria
também cultural) outrora pertença do comércio de pequena e média
escala. Até porque a lógica do grande comércio é a de
“automatizar” ao máximo o próprio processo de consumo … sendo
concebido para funcionar com o menor número possível, e por vezes
até impossível, de trabalhadores.
Isto
só falando do aspecto “quantitativo”, porque a nível
“qualitativo” os postos de trabalho criados tendem a ser muito
mais precários e instáveis.
Ao
nível da produção e capacidade (quantitativa e qualitativa) de
escoamento por parte do produtor (sobretudo se estivermos a falar de
pequenos e médios produtores) também se colocam questões
bastante importantes … a realidade é que com o “afunilamento”
dos canais de distribuição (que se concentram cada vez mais “nas
mãos” de cada vez menos “retalhistas”, e cada vez mais nas
mãos de grandes corporações do retalho: em Portugal por exemplo a
Sonae distribuição e a Jerónimo de Martins - dois gigantes do
retalho que controlam, em conjunto, cerca de 60% do mercado
nacional), as escolhas dos produtores, sobretudo pequenos produtores,
tornam-se cada vez mais reduzidas, já para não dizer inexistentes.
Não
é pois de estranhar que ao estarmo-nos a referir ao fenómeno da
cada vez maior concentração em termos de centros e mecanismos de
distribuição implique referirmo-nos a esse outro (ou no essencial
não será o mesmo?) fenómeno concomitante que é o da cada vez
maior concentração de entidades produtoras, e o sector alimentar é
disso um excelente exemplo (apesar de em muitas situações existirem
dezenas de marcas diferentes muitas vezes, e numa observação mais
atenta, chegamos facilmente à conclusão que muitas dessas marcas
apesar de diferentes entre si são propriedade de um conjunto muito
restrito de grandes grupos económicos). Por exemplo, do nosso cabaz
“habitual” de produtos alimentares quantas dessas marcas não são
propriedade da “Nestlé”, da “Unilever”, etc?.
Quando
nos referimos ao comércio de grande escala é importante
reflectirmos também sobre a lógica e
os
modelos de consumo implícitos.
O
modelo que geralmente é “instituído” é, por inerência e
definição, um estilo de consumo mais massificado e que acaba por
ser mais próximo daquilo que se pode designar por consumismo do que
propriamente consumo no seu sentido mais tradicional.
Toda
a dinâmica e estratégia dos grandes espaços comerciais
centra-se
pois numa permanente instigação ao consumo. Vezes sem conta
acabamos por adquirir não somente os produtos que com alguma
objectividade necessitávamos mas também, por via de algum
“aliciamento” e incentivo ao consumo, muitos produtos que no
fundo não tinhamos verdadeira necessidade.
Esse
género de realidade acaba, ou acabava, por ser bastante mais raro
nos estabelecimentos de comércio de pequena escala. Geralmente
quando íamos a alguma mercearia acabava-mos por trazer somente
aquilo que realmente pretendiamos inicialmente adquirir.
Por
aqui pode-se facilmente deduzir que a escala de “desperdício”
gerada (ou seja, produtos que acabam por não ser adquiridos e se
tornam, por exemplo por uma questão de prazos de segurança/validade,
inviáveis para a comercialização,) é enorme.
O
desperdício (quando analisado na sua essência é uma “anormalidade”
num processo natural de produção – consumo, pelo menos nas
proporções dantescas em que ocorre actualmente) que, face á nossa
realidade actual, acaba por nos parecer “normal” tem na verdade
múltiplas implicações e nuances: não nos podemos esquecer que
toda a produção implica um consumo, muitas vezes extremamente
elevado, de recursos naturais, de matérias-primas. Todo o processo
tem um elevado impacto em termos de consumo energético. Todo o
processo, ainda para mais numa economia exacerbadamente globalizada,
tem um elevado impacto na forma como se organizam as relações de
trabalho (ou será exploração?) a nível global. Todo o processo
tem um impacto extremamente elevado ao nível dos resíduos gerados
(e na maior parte dos casos lançados na Natureza sem tratamento
adequado), ou não estivéssemos a referirmo-nos ao conceito,
precisamente, de desperdício …
Nessa
óptica o desperdício que acaba por ser uma consequência tida quase
como secundária ou lateral no processo de produção-consumo
capitalista é na verdade uma concepção que se poderá considerar,
face àquilo que foi exposto anteriormente, profundamente errada e
até imoral …
Obviamente
que chegados a este ponto somos obrigados a discutir se o próprio
modelo económico vigente, baseado numa concepção orientada para um
crescimento económico constante, fará de facto sentido ou se, pelo
contrário, não fará cada vez mais sentido pensarmos num modelo de
“decrescimento” da economia em contraponto a este modelo
exacerbadamente globalizado. No
fundo estaremos a falar de uma relocalização da economia num modelo
essencialmente baseado nos recursos e dinamismos locais.
Falando
em economia globalizada, e voltando um pouco mais especificamente à
questão dos estabelecimentos de comércio, é importante para esta
análise referirmos também uma outra realidade que são os
“estabelecimentos especializados na importação de produtos
massificados a preço baixo”. No fundo aquilo que comunmente é
conhecido como as “lojas chinesas”, apesar de muitas vezes nos
estarmos a referir a estabelecimentos de
propietários originários
do Bangladesh, da Índia, etc.
Uma
das “maravilhas” da globalização do comércio (postulada, entre
outras, por mega organizações sem qualquer controlo democrático
como a OMC – Organização Mundial de Comércio, o
Banco Mundial e o
Fundo
Monetário Internacional) foi/é a eliminação de muitas das
barreiras alfandegárias que tinham ainda a capacidade de proteger o
comércio de base nacional, local, etc. Muito basicamente diria que é
um dos fenómenos mais fundamentais na compreensão da forma como se
estrutura a economia e as
sociedades actuais mas, não obstante, também um dos menos estudados
e debatidos. É um fenómeno crucial para compreender questões tão
fundamentais como as elevadas taxas de desemprego dos países ditos
desenvolvidos, como a designada “crise económica”, entre muitas
outras (por exemplo,
a
crise ambiental).
Nessa
medida os nossos “mercados” são inundados com produtos
provenientes “do outro lado do mundo” que nos chegam a preços,
regra geral, bastante inferiores mas com um custo ambiental, laboral,
social e até económico extremamente elevado e pesado; apesar de
estarmos a falar de “custos” que raramente são expressos no
custo final dos bens que adquirimos.
Ao
nível do comércio local o surgimento deste tipo de
estabelecimentos, na verdade “como cogumelos”, tem tido também,
a par dos estabelecimentos de grande escala (cadeias de desconto,
supers, hipers, “shoppings”, out-lets e afins), um impacto brutal
e fatal no desaparecimento do “Comércio Familiar e de
Pequena/Média Escala”.
Existe
também uma dimensão que importa, e bastante, referir que se prende
com a dimensão cultural. Se quisermos etnográfica também:
Muito
mais do que simples “lojas”, os estabelecimentos de “Comércio
Familiar e de Pequena/Média Escala” possuem um papel muito
importante ao nível da construção e preservação da identidade
cultural das comunidades locais. Naquilo que actualmente se designa
como um “património imaterial” mas não só … existe também
um património muitas vezes material, como o arquitectónico por
exemplo, que se tem vindo a perder a um ritmo vertiginoso.
O
seu desaparecimento é, simultaneamente, uma das principais causas e
consequências do processo de desertificação e degradação que tem
vindo a suceder nas últimas décadas nos Centros Históricos dos
principais centros urbanos. O Porto é disso um exemplo “assustador”.
Muitas vezes estamos a falar de ruas, por vezes quarteirões
inteiros, que parecem um verdadeiro cenário de pós-guerra: casas,
lojas completamente abandonadas e num avançado estado de degradação.
Assim
sendo é-me extremamente difícil compreender como é tão poucas
vezes estabelecido esse nexo causal, que na essência me parece
evidente, entre a decadência do “Comércio Familiar e de
Pequena/Média Escala” e tantos dos fenómenos anteriormente
referenciados. Na verdade,
muitas
das propostas muitas vezes avançadas e implementadas por exemplo de
chamada “requalificação urbana”, apesar de “travestidas” de
comércio de pequena escala (por exemplo considerando a dimensão das
lojas), são, no essencial, dinâmicas de difusão do comércio de
grande escala (dado que muitas vezes consistem em estabelecimentos de
grandes marcas, de cadeias multinacionais).
Parece-me
pois, de forma inequívoca, que a revitalização do comércio de
pequena e média escala, do comércio tradicional e/ou familiar, é
de importância fundamental para a própria revitalização dos
centros urbanos (mesmo os de pequena dimensão) e provavelmente
vice-versa.
Parece-me
ainda que uma relocalização da economia, a reconstrução de
economias de carácter essencialmente local/regional, será
fundamental para sairmos da situação de evidente colapso económico
e laboral gerado pelo economia especulativa global. E, mais uma vez,
o
comércio dito de pequena e média escala, de comércio tradicional
e/ou familiar, revela-se crucial.
Chegados
a este ponto da reflexão é importante referir que a questão não é
evidentemente linear, ou
seja, a questão não reside no facto de estarmos perante “bons”
e “maus” … o pequeno comércio de um lado e o grande retalho do
outro, por exemplo. Não está também em causa uma completa rejeição
e aversão aos novos modelos de comércio e consumo (grande retalho,
cadeias multinacionais, etc.) Acima de tudo, o que está aqui em
causa é o
desequilibrio cada vez maior
entre
um modelo e outro. Tem-se
assistido a
uma lógica completamente “predatória” de quase completa
substituição
(num
período de tempo relativamente curto)
de
um modelo pelo outro, ao ponto de, actualmente, muitos de nós, e
sobretudo as gerações mais jovens, só terem quase como referência
os modelos de comércio mais “modernos” e de maior escala.
E são mais do que referência: são modelos quase exclusivos de
consumo.
Existem
muitas dinâmicas sociológicas, e elementos identitários locais,
cujo desaparecimento do comércio tradicional leva também a uma,
muitas vezes irreversível, extinção.
No
fundo é toda a lógica de consumo, toda a lógica relacional, que é
também muito diferente da
lógica do
grande retalho, que acaba por ser muito mais automático, “impessoal”
e em vários aspectos … desumanizado.
Há
pois toda uma dimensão (ou várias dimensões) afectiva e cultural
que se perde … resultando numa perda talvez até bem superior às
próprias perdas em termos económicos (com a deslocação dos
recursos económicos da economia local para os grandes centros
financeiros globais, geralmente propriedade de um conjunto muito
restrito de entidades e indivíduos), não obstante a importância
que estas têm para a compreensão da crise económica global actual.
Chegados
a este ponto as principais questões que se colocam são:
De
quem é a principal responsabilidade por tudo isto e o que pode ou
não ser feito para que as coisas sejam diferentes?
O
consumo possui hoje, portanto, um significado prático e sociológico
profundo em todo um contexto de neoliberalismo hegemónico à escala
mundial: muito para além da sua função "pré-histórica"
de satisfação de necessidades essenciais, actualmente as supostas
necessidades dos indivíduos – necessidades, desde logo, de forma
frequente artificialmente criadas e ampliadas até à exaustão pela
poderosa indústria publicitária e departamentos de marketing das
principais corporações multinacionais – são o pretexto ideal
para reproduzir e disseminar o consumo enquanto instituição
teológica (na medida em que funciona quase como se de uma religião
se tratasse), dogma cultural e mecanismo prático de alienação
colectiva, mas por via de um crescente processo de feroz competição
e estratificação individual materialista.
Ou ainda, segundo Baudrillard: “O consumo surge como conduta activa e colectiva, como coacção e moral, como instituição. Compõe todo um sistema de valores, com tudo o que este termo implica enquanto função de integração do grupo e de controlo social.” [3]
Ou ainda, segundo Baudrillard: “O consumo surge como conduta activa e colectiva, como coacção e moral, como instituição. Compõe todo um sistema de valores, com tudo o que este termo implica enquanto função de integração do grupo e de controlo social.” [3]
E
isto equivale a dizer que todo este processo, e as próprias
dinâmicas de comércio e consumo instituídas, não surgem “do
nada” ou “por mero acaso”. Inscrevem-se evidentemente num
quadro mais amplo de disseminação de um modelo ideológico
neoliberal à escala global. E, face à dimensão e poder dos
mecanismos de reprodução desse sistema que se tem vindo a tornar
hegemónico, podemos facilmente ficar com a sensação de que não há
muito que possa ser feito …
No
entanto importa referir que “a responsabilidade” é também dos
próprios comerciantes. É evidente que a pressão e impacto de todo
o contexto económico e cultural é extremamente elevado, é evidente
que é quase impossível competir com o grande comércio face a todos
os instrumentos e mecanismos que este dispõem … Mas coloca-se a
questão: O que é que já foi feito, ou é feito, pelos próprios
comerciantes no sentido de afirmarem as suas próprias mais-valias ou
comunicarem os seus próprios pontos fortes e pontos diferenciadores?
Diria que pouco … Há algumas excepções, vários exemplos de
sucesso de estabelecimentos de pequeno comércio que têm sido
capazes de se afirmar, e até com elevado sucesso nalguns casos, num
contexto de acentuada regressão do sector. Mas a verdade é que não
tenho conhecimento de muitos casos que evidenciem uma significativa
capacidade de cooperação, acção e visão entre diferentes
unidades de pequeno comércio, apesar de muitas vezes se localizarem,
por exemplo, em áreas geográficas bastante próximas.
De
certa forma esse facto compreende-se pelo envelhecimento e pela
ausência de perspectivas futuras que caracteriza em larga medida o
sector. Não justificando isso por si só tudo.
Isto
sem prejuízo de haver também diversas situações de comerciantes
tradicionais que simplesmente estarão na profissão “errada”,
considerando a atitude muitas vezes pouco amistosa, prepotente e em
jeito de “estar a fazer um favor ao cliente ao servi-lo” que
adoptam.
No
entanto o potencial, o valor das suas especificidades e
características diferenciadoras, está todo lá …simplesmente não
tem sido devidamente reconhecido, potenciado e, sobretudo,
comunicado.
E
chegamos pois à responsabilidade que têm as diversas entidades
competentes, ou será tantas e tantas vezes incompetentes?
A
verdade é que quando falamos em “reconhecimento”, ou na ausência
de reconhecimento pelo valor e valores do Comércio Familiar e de
Pequena/Média Escala Comércio Familiar – CFPME, essa ausência
parte, vezes sem conta, das próprias entidades que mais deveriam
fazer por ele. Na verdade são as primeiras a apoiar projectos de
grande escala que frequentemente constituem a “pedra lapidar” do
que ainda subsiste de comércio de raíz tradicional.
A
responsabilidade também é, e bastante, de cada um de nós. As
nossas escolhas enquanto cidadãos, enquanto consumidores, são
determinantes no sentido de definir se o nosso dinheiro irá ser
investido, por princípio, na economia local, ao apoiarmos pequenas
unidades de comércio tradicional e/ou familiar ou se, pelo
contrário, estaremos a contribuir ainda mais para o poder económico
de uma grande corporação multinacional e a contribuir ainda mais
para a economia capitalista global.
Por
isso diria que o factor essencial de toda esta “questão”, ou
questões, é precisamente esse enorme potencial que existe de
podermos fazer a diferença e podermos inverter rumos que nos parecem
irreversíveis e fatais.
Há
na verdade também vários óptimos exemplos de novos projectos,
expressando novas tendências, que têm vindo a surgir. Existem
alguns exemplos interessantes de cooperativas de consumo, cujos
propósitos vão justamente no sentido de aumentar o grau de controlo
e de
responsabilidade do próprio consumidor no processo de consumo. Algo
que contraria a tendência que tem sido fomentada pelas grandes
corporações de tornarem o consumidor num ser cada vez mais
permeável aos ataques de comunicação corporativa (publicitária,
promocional, etc.) e, por outro lado, num ser com cada vez menos
importância nas decisões em termos de funcionamento dos mecanismos
de produção-distribuição-consumo. Qual é a percentagem de
pessoas que se preocupa verdadeiramente com as condições em que
foram fabricadas as calças que vestem? Qual é a percentagem de
pessoas realmente dispostas a abdicar de comprar vestuário, só a
título de exemplo, da sua marca favorita pelas condições em que
esta produz (ou manda produzir) as suas roupas? Será provavelmente
uma percentagem muito reduzida, particularmente num país como
Portugal onde ainda vivemos inebriados pelas maravilhas que a
recentemente (sobretudo nas últimas 3 décadas) sociedade de consumo
nos “promete”. Mas, apesar de reduzida,
é
precisamente nessa minoria - talvez mais consciente, talvez mais
empenhada na descoberta e criação de modelos de consumo
alternativos - que reside em grande medida a esperança e
possibilidade de os processos de consumo poderem caminhar num sentido
de maior justiça social, maior responsabilidade ambiental, maior
sedimentação de estruturas e modelos numa economia de base local. A
agricultura de base local e comunitária é um óptimo exemplo. Os
diversos projectos que têm surgido de hortas comunitárias,
nomeadamente em contexto urbano, são importantes numa dimensão tão
valiosa como é a da auto-produção. São
igualmente importantes as várias feiras e mercados"
alternativos
que permitem um contacto mais directo e humanizado entre produtores
(por exemplo artesãos) e consumidores também.
Poderá
parecer que há muito pouco que possamos fazer mas, na verdade, isso
é precisamente, vezes sem conta, o pretexto para não fazermos nada.
E tudo aquilo que possamos fazer que seja mais do que nada é por si
… muito mais do que nada.
A
reflexão já vai longa … muito já foi dito mas muito mais ficou
por dizer. Sobretudo, muito mais há a fazer por cada um de nós para
que os nossos modelos de consumo (e claro, produção e distribuição)
possam ir mais de encontro àquilo que no fundo sabemos que é mais
correcto: uma maior justiça económica, social e ambiental.
E
uma caminhada de mil passos começa … com o primeiro passo. (5)
Vamos
a isso?
Pedro
Jorge Pereira
Formador
e Activista Eco-Social
Dinamizador
do C.3C´s – Centro para o Consumo Crítico e Consciente e
das O.3C´s – Oficinas para o Consumo Crítico e Consciente,
no Porto, bem como do Projecto Terramote351 – Desenvolvimento,
Formação e Turismo Eco-Social.
Correcção
Ortográfica:
Sofia
Barradas
C.3C´s
– Centro para o Consumo Crítico e Consciente
Grupos
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Terramote351
- Desenvolvimento, Formação e Turismo Eco-social
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Pedro
Jorge Pereira
telf.
93 4476236
facebook:
https://www.facebook.com/pedro.j.pereira
(1)
Lima, Ana Paula; (2010). Mais de 24 mil lojas fecharam as portas
desde chegada dos hipermercados. Jornal de Notícias 2010 12Dez 10,
[Em
linha]. Disponível em
<http://www.jn.pt/PaginaInicial/Economia/Interior.aspx?content_id=1731436>.
[Consultado em 2012 04Abril 19].
(2)
Idem
(3)
Baudrillard, J. (1996). A
sociedade de consumo.
Lisboa, Edições 70.
(4)
Lao Tsé